Carlos Marighella, em uma de suas fitas gravadas que fora ao ar na Rádio Libertadora:
Ao Povo brasileiro!
“Da cidade da guerra revolucionária, nela estamos empenhados com todas as nossas forças no Brasil. A polícia nos acusa de terroristas e assaltantes, mas, não somos outra coisa que não revolucionários que lutam a mão-armada contra a atua ditadura militar brasileira e o imperialismo norte-americano.”
Introdução
Aproxima-se do inenarrável, o sentimento de poder assistir à adaptação cinematográfica de uma das literaturas biográficas de Carlos Marighella.
Pesa nossa percepção de mundo, de contexto político, de humanidade, de lutas, de perdas irreparáveis, daquilo que traz sentido à existência, daquilo que permite ao indivíduo a liberdade, a penosa coragem, a inquebrantável amizade e a galhardia (moral inabalável diante das dificuldades, coragem e bravura íntegra) em guerrilhar por aquilo que não é apenas para si, mas para um Povo!
Sem ter tido a oportunidade de ver o fruto de sua armada, da alma ao corpo, Marighella deixou um legado.
Legado este que coube aos companheiros de sua época, aos admiradores, aos amigos e aos inimigos, reerguerem o Brasil. Carlos Marighella não incendiou apenas o mundo, ele acendeu almas.
Nossa crítica hoje, fala um pouco sobre a obra de Wagner Moura. Que impacta do início ao fim, derretendo o sentimento das mais duronas e dos mais durões.
Ademais, sigamos. Passando pela biografia, que é importante ressaltar, para que possamos chegar nas considerações sobre a obra.
Que sempre nos lembremos enquanto nos é tempo e jamais deixemos de ser todos, com todos, por todos, porque um Povo (intencionalmente e inteligentemente unido) é maior e mais forte do que o Mal banal a assolar a Nação. Sendo Todos, nenhum desgoverno se mantém de pé.
“[…]. Não tenho que pedir licença para praticar atos revolucionários” – Marighella.
Biografia de Carlos Marighella
Nascido a 05 de dezembro de 1911, Carlos Marighella era um dos sete filhos de Augusto Marighella (operário metalúrgico, mecânico e ex-motorista de caminhão de lixo, chegado a São Paulo e, a posteriori, transladado à Bahia, era um imigrante italiano) e Maria Rita do Nascimento (baiana e ex-empregada doméstica, negra, filha livre de escravos africanos trazidos do Sudão – negros hauçás). Salvador fora sua casa do nascimento e de alguns anos a fio.
Tendo sido apresentado à alfabetização desde cedo, pelo próprio pai, Marighella já lia aos quatro anos de idade, desde literaturas nacionais às importadas com predileção – de seu pai – pelas leituras de autores franceses. Esta rica familiarização com a leitura de vastas obras, levou o garoto a tornar-se um exímio escritor.
A despeito da prova de física que respondera usando versos poéticos, tão bem construídos e brilhantes que seu poema ganhara um lugar especial de exibição no painel da escola. Tilintando em genialidade até a ascensão da ditadura. Que levou o colégio a retirar o feito de seu local de exibição.
E, talvez, tenha sido aqui, o primeiro encontro/embate de Carlos Marighella com esta cruel e espinhosa deturpação política.
Em 1934 o rapaz abandonou o curso de engenharia civil para tornar-se um militante profissional, ingressou no partido PCB e mudou-se para o Rio de Janeiro. Em 1932 fora preso pela primeira vez, e adivinhem só o porquê? Ele escreveu um poema, sim, um poema com severas críticas ao interventor Juracy Montenegro Magalhães (militar e político brasileiro).
Em 1936, durante a ditadura na Era Vargas, fora preso novamente permanecendo em encarceramento por um ano inteiro. Solto por ser considerado um preso sem condenação, entrou para clandestinidade até ser capturado, novamente, em 1939. Torturado, permanecera na prisão até 1945.
Eleito deputado federal constituinte pelo PCB baiano, conheceu Elza Sento Sé, a quem dedicou seus sentimentos e teve seu filho único Carlos Augusto Marighella. Nascido a 22 de maio de 1948 no estado do Rio de Janeiro. Ano este em que Marighella perdeu seu mandato por mudanças na proscrição do partido.
Após retornar à clandestinidade, passou um tempo na China, à convite do comitê do Partido Comunista da China, por lá, teve a oportunidade de beber de novas fontes, obtendo conhecimento acerca da revolução comunista chinesa.
Após o Golpe Militar, em maio de 1964 fora preso novamente, após ser baleado em uma sessão de cinema. Os agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) foram os responsáveis pela operação.
Longa espera
Após dois anos de uma incansável espera, Marighella (2019), foi exibido no Brasil. Após ser censurado pelo governo do Presidente Jair Bolsonaro, a obra cinematográfica pôde ganhar data fixa de estreia em seu país.
Dirigido por Wager Moura, e protagonizado por Seu Jorge, o longa irá – oficialmente – para as telonas em 04 de novembro de 2021. Curiosamente, aniversário de morte de Carlos Marighella (assassinado em 04 de novembro de 1969).
Tendo sido exibido a 14 de fevereiro de 2019 na Alemanha no Première em Berlim, fora aclamado pela crítica estrangeira. Gerando ainda mais ansiedade para o seu lançamento em nosso país.
Inspiração para o filme Marighella
O filme é baseado na obra literária de Mario Magalhães: “Marighella: O guerrilheiro que Incendiou o Mundo”. É uma biografia que inspira, traz importantes pontos da vida do ativista, bem como adjacentes acontecimentos sociais à época.
Felipe Braga e Wagner Moura realizaram um excelente movimento de adaptação da literatura ao produzir o roteiro para o longa.
Certamente tiveram trabalho ao ter de selecionar acontecimentos indispensáveis a serem trazidos para as telonas. Afinal, é um emaranhado de riquezas que a literatura traz.
Contudo, não decepcionaram e conseguiram entregar um bom roteiro, com diálogos bem estruturados e interações harmoniosas.
O filme, contexto e ambientação
“[…] O medo dá origem ao mal. O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória. Enche a imaginação de domínio.
São demônios os que destroem o poder. Bravio da humanidade.
Viva Zapata! Viva Sandino! Viva Zumbi! Antônio conselheiro!
Todos os panteras negras! Lampião sua imagem e semelhança.
Eu tenho certeza eles também cantaram um dia […]”
Trecho da canção “Monólogo Ao Pé De Ouvido” de Chico Science.
Tão importante quanto o contexto em que ela é empregada, a canção de Chico Science é nosso primeiro contato com a trilha sonora do filme, que já te puxa para fora da zona de conforto; imprimindo em uma eletrizante cena de roupa, uma canção de se diz.
Ela chega mostrando-nos que o roteiro vem sobrecarregado de símbolos, sejam eles postos em música, sejam eles postos em poesia, frases, nuances de um gesto, uma troca de cena. A todo tempo estes simbolismos, dão-nos a dimensão exata de quem é o protagonista, de quem é o personagem com o qual iremos lidar por todo Longa.
Assim como a trilha sonora nos agita a emoção, a cronologia cumpre seu papel em semelhança. Recheada de idas e vindas em captura de memórias, a edição/montagem de Lucas Gonzaga é perfeitamente assinada. Embebido de uma simetria moderna, ele explicita a visão que os opositores de Marighella têm a despeito do guerrilheiro. E isso é primoroso. Porque sabe apresentar ao espectador qual visão o povo (cegamente) tinha, acerca de Marighella.
A obra de Wagner Moura consegue absorver uma organicidade que afasta o protagonista de ser um personagem vazio que luta por um ideal e acaba afundando o Longa em algo blasé. Afiado, objetivo e completamente realista, proporciona ao protagonista uma salubridade que muitos filmes a trabalhar o mesmo contexto não consegue alçar.
A possibilidade de trazer a questão do viés marxista como caminho para a ascensão do Povo como soberano ao poder, é genial. Ainda mais em se tratando de um governo fascista que banha as ruas de seu país de sangue inocente, jogando o próprio Povo contra os seus.
Há de se dizer, também, que a opção por usar de um estilo câmera na mão, faz uma mega diferença nos planos que se seguem durante o longa. Proporciona uma planos fechados que são essenciais à construção impactante, envolvente e realista da narrativa. Mostrou-nos a experiência adquirida em sua jornada no universo da sétima arte.
Outro ponto forte do longa é a ambientação. Sinistra (em sua original significância), e assim eu coloco para dizer da deturpação que o governo autoritário faz ao jogar um grupo de ativistas, contra a nação. Se buscar o significado em latim temos que dentre uma das possíveis traduções está “esquerdo”, “ameaçador”, “assustador”. Convêm que assim o seja, para que nenhum cidadão ouse voltar-se contra o Governo.
Mas, “assustador” mesmo é ato impiedoso que os agentes do DOPS tratavam os seres humanos viventes no Brasil da Ditadura.
Os personagens em Marighella
É importante dizer desta, para poder parabenizar a entrega dos atores em relação aos seus personagens que, sem dúvidas, fora muito difícil de realizar. A ver uma pessoa pública que está constantemente posicionando-se à favor das lutas que as minorias (sociais) levantam; Bruno Gagliasso dá vida a um agente da repressão, brutalmente cruel e assustadoramente crível.
Enquanto eu apreciava suas aparições na telona, causando-me repudia e admiração pelo profissionalismo, eu refletia o quão duro fora ter de incorporar um carrasco que é o oposto da pessoa que ele se apresenta ao Brasil e ao mundo. Bem como, deve ter-lhe sido completamente penoso todas as falas, todas as agressões, todo o ódio que seu personagem carrega. Cabe-lhe apenas uma grandiosa parabenização (redundante, porque tem de ser).
A maturidade com que Wagner Moura dirigiu o longa proporcionou ao elenco um rompante de emoção, veracidade, credibilidade, intensidade que traz ao palco da revolução, uma ação certeira. É como se tivéssemos entrado em uma máquina do tempo e, sem podermos ser vistos, acompanhados a tudo em carne e osso.
Um ponto a observar sobre cada um dos citados acima, exceto Luiz Carlos, é que a maioria dos nomes dos personagens se mantiveram o mesmo dos atores. Ou seja, é como se eles tivessem voltado ao passado e, na pessoa que são, pudessem dar ao país, à sociedade, ao Povo a oportunidade de enxergar como é importante saber-se enquanto cidadão. Como é importante colocar-se enquanto cidadão. Como é indispensável e fundamental, lutar para que a liberdade de um, seja sempre, a liberdade de todos. Para que o direito de um, seja sempre, o direto de todos.
[ALERTA DE SPOILLER]
Uma das (incontáveis) cenas que este grupo lida, é o momento do assassinato do personagem de Humberto Carrão. Arrepiou-me corpo e alma (a sensação vem e vai em várias cenas), o grito enfático daquele que ama sua nação, seu país e por ele morreria sem pensar duas vezes; é tão real que deixa nítida o quanto o ator viveu seu personagem e como fora, este, um momento importante em sua vida. Aliás, todas as cenas em que Humberto aparece, ele é a personificação da causa e isto é muito rico.
Jorge Mário da Silva, Seu Jorge é o responsável por dar vida à Carlos Marighella. Pois digo, apenas, que Wagner Moura não errou ao escalar o músico e ator para cumprir este papel.
Uma figura que tem várias camadas, não é só um homem revolucionário, ativista, corajoso, poeta, romântico, pai, amigo, amante. É um homem que se permite, permite demonstrar que tem medo, que é destemido – ao mesmo tempo –, que não poupa esforços para alçar a finalidade de sua verdade, que tem fé naquilo que acredita, que não foge à luta, que, se preciso for mata, mas além de tudo morre. Morre pelos seus. Que não só acredita em um mundo justo, mas o cria. Fomenta a ideia e dá luz à mesma, dando sua cara à tapa, seu corpo à tortura, seu brilhantismo lógico e linguístico.
Seu Jorge soube presentear o espectador com todas as camadas presentes em seu protagonista. Magnífico! Tanto quanto a vida que deu a seu personagem de forma perfeita, também fora as interações com os companheiros. Seus companheiros (os atores) e os companheiros de Marighella (os personagens).
Luiz Carlos Vasconcelos, que interpreta o Almir, chamado por Marighella de “O Velho”, está em uma afinadíssima relação com Seu Jorge. O envolvimento dos personagens é, a todo momento, uma emoção honesta. Os diálogos, os medos, as concordâncias, as discordâncias, as trocas, tudo se constrói de forma ativa e muito maravilhosa.
Não pensem vocês que eu esqueci de citar o tão jovem e já tão brilhante Matheus Araújo. Pelo contrário, faço honrarias ao mesmo. Vivendo o difícil, duríssimo, doloroso, árduo, papel de Carlinhos Marighella, o rapaz não deixou nada, absolutamente nada, a desejar. Soube vestir o personagem como ninguém. A interação com Seu Jorge é de harmonia comovente. As cenas em que Carlinhos Marighella se descobre, se sente, se sabe filho de um homem que está lutando por ele e por todos. É de nos tirar o chão. E a convicção que, tão jovem, o personagem já tem, mostra como nós – que vivenciamos a diária luta da minoria social – precisamos nos colocar na sociedade.
Parabenizando a todas as atrizes, atores e principalmente à Fátima Toledo por ter essa sensibilidade gênia ao ser uma preparadora F O D A (desculpem o uso da palavra, mas merece ser exaltada), soube banhar o longa com dimensões atreladas à realidade fugindo de uma coisa gasta. Toledo consegue extrair o melhor dos atores e atrizes. Ela sabe criar um ambiente e colocá-los neste ambiente com uma maestria ímpar.
Até aqui, deu para notar que o filme é excelente e vale a pena ser assistido, concorda?!
Conclusão
Absolutamente fora do convencional dos filmes nacionais, Marighella é um longa retratado em toda sua abundância de violência, brutalidade, crueldade, falta de humanidade e medo; que o período da Ditadura Militar no Brasil expressou. E, muito possivelmente, é nesta nuance, nesta entrelinha que reside a maestria da obra.
Claro, agregada a todo contexto que fora dito e colocado anteriormente à nossa conclusão.
Há, no filme, um trecho em que Marighella – ao banhar-se – pensa/fala sobre a ideia. Assemelhando-se ao fato de uma ideia é imortal. E, ali, nesta reflexão, a gente compreende o que está por vir. A gente compreende que aquele homem, aquela carne, não é o que será deixado para as gerações futuras. O que será deixado como seu legado, é sua ideia.
Não se pode matar palavras, não se pode matar poesias. Nem se pode matar a língua.
Carlos Marighella sabia disso, ele sabia que para chegar até o coração aflito de cada indivíduo eram preciso palavras. Palavras que não fossem vazias, palavras que representassem ou chegassem à conotação da realidade emergente. Palavras que fomentassem o anseio pela vida. O anseio por sair da inércia.
E ele o fez!
Ele deu ao povo pólvora, não só a pólvora física de um revólver, mas a principal: A IDEIA! Ele falou para o povo, com o povo, ele trouxe os jovens à luta, ele trouxe a nação à luta. O momento exato em que o corpo físico inspirou e expirou seu último ar; seu pensamento espalhou-se por todo país.
Marighella dá ao povo o direito de ser patriota de saber o que é o Brasil e de defendê-lo: Olho por olho!
E a gente sabe que a ele alçou sua justiça, a gente sabe porque a emocionante cena pós-crédito que um grito de todos nós. Filhos que não fogem à luta, que tem a agradecer e perpetuar a liberdade conquistada. Que tem a aprender e lembrar que governos que nos roubam o direito à existência, não preza por seu Povo.
Marighella é a ideia que lembra a cada um de nós o valor de prezar pelo humano. É o grito de liberdade entalado em nossas gargantas neste e em tantos outros momentos de dor e medo.
Crítica por Pabline Furst (@furstpabline_)
Ficha Técnica
Roteiro: Felipe Braga, Wagner Moura
Direção: Wagner Moura
Produção: Andrea Barata Ribeiro, Bel Berlinck
Música: Antonio Pinto
Direção de Fotografia: Adrian Tejido
Montagem: Lucas Gonzaga
Elenco: Seu Jorge, Adriana Esteves, Bruno Gagliasso, Luiz Carlos Vasconcelos, Humberto Carrão, Herson Capri, Ana Paula Bouzas, Bella Camero, Guilherme Lopes, Henrique Vieira, entre outros.
Distribuído por: Downtown Filmes, Paris Filmes
Companhias Produtoras: O2 Filmes e Globo Filmes
Assista ao trailer de Marighella:
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