“Medida Provisória”, de Lázaro Ramos, é uma ferroada na nossa consciência e sinal de vigor do cinema brasileiro.
Aplicadas unilateralmente pelo presidente da república como normas em forma de lei, as medidas provisórias (MP’s) geralmente são causa de polêmica, pois revelam a faceta mais autoritária de um governo.
Em tempos recentes, testemunhamos a insatisfação popular ganhar as ruas contra MP’s editadas por Michel Temer, ainda que o recurso seja recorrente no Brasil em todos os anos da República.
Assim, o novo filme “Medida Provisória” parece aproveitar bem o entendimento básico da sociedade sobre as MP’s: dispensando explicações sobre legislação, a obra discorre sobre os efeitos imediatos da MP 1888 – ironicamente, ano da Lei Áurea no Brasil – e a resistência de quem é diretamente atingido por ela, a população negra.
MEDIDA PROVISÓRIA É UMA ESTREIA ESPETACULAR
“Medida Provisória” crava com brilho a estreia de Lázaro Ramos como diretor de cinema. O filme finalmente aterrissa no circuito nacional após ter sofrido com embargos e silêncios impostos pela ANCINE (Associação Nacional de Cinema).
Com previsão inicial de lançamento para novembro de 2020, a produção chega com atraso de mais de um ano.
“Medida Provisória” é inspirado na peça teatral “Namíbia, não”, escrita por Aldri Anunciação entre 2009 e 2011, e que foi também dirigida por Ramos. Além de Alfred Enoch, Taís Araújo e Seu Jorge nos papéis principais, o elenco conta com nomes como Mariana Ximenes, Adriana Esteves, Renata Sorrah e Emicida.
MEDIDA PROVISÓRIA E ALGUNS PARALELOS
É inevitável não traçar paralelos entre “Medida Provisória” e outras distopias nacionais bem sucedidas, como a série “3%” (2016), da Netflix, e “Bacurau” (2019).
De partida, somos apresentados a Antônio (Alfred Enoch), um jovem advogado e membro da Associação dos Advogados de Melanina Acentuada – assim são chamados os negros nesse momento histórico –, que vai à justiça reivindicar reparação financeira pelos quatro séculos de escravidão sofrida pelos melaninados.
Contudo, mesmo agradecendo pela oportunidade de fala, Antônio discursa a uma plateia praticamente esvaziada.
Logo em seguida, o advogado entreouve uma conversa entre os juristas presentes à sessão, expressando-se contrários à proposta de indenização. Mais tarde, a resposta do governo à reivindicação feita virá na forma do oferecimento de uma exportação voluntária dos melaninados “de volta” à África.
Tal solução é promovida com os floreios de uma idealização e síntese da perfeita felicidade, pressupondo-se um sonho dos brasileiros melaninados de irem ao encontro de suas origens africanas – sem qualquer garantia de que a vida no outro continente haverá de ser melhor do que aqui.
MEDIDA PROVISÓRIA – POR DENTRO DO ENREDO
Antônio é casado com Capitú (Taís Araújo), uma médica. Amparada, a princípio, por sua prestigiosa profissão, Capitú se mostra satisfeita com o estado de coisas e um tanto alheia quanto ao horror do racismo e suas consequências, sem nunca as ter sofrido antes.
A atribuição, aos protagonistas negros, de profissões historicamente representativas do privilégio de ser branco no Brasil dá, aqui, o que pensar.
O casal divide seu apartamento com o primo de Antônio, André (Seu Jorge), um cativante blogueiro que acompanha as convulsões sociais e políticas do país, expondo-as por meio de vídeos na internet, com apelos à luta e à resistência.
Quando, porém, o voluntarismo que caracterizava o programa “Resgate-se já!” passar para a deportação obrigatória dos melaninas acentuadas, ditada pela MP 1888, as ações de Antônio, Capitú e André serão representativas de diferentes formas de resistência à aplicação arbitrária da lei.
O critério da MP 1888 é bem objetivo: para ser deportada, basta a pessoa possuir traços que, mesmo de longe, atestem sua afrodescendência.
Enquanto os conflitos e capturas ocorrem nas ruas, um pequeno grupo se protege e resiste às escondidas, nos lugares chamados AfroBunkers. Capitú vai parar num desses, enquanto Antônio e André se recusam a deixar seu apartamento, recorrendo ao artigo 150 do Código Penal, aquele que impede entrada em casa alheia contra a vontade de seu proprietário.
MEDIDA PROVISÓRIA – FICÇÃO OU REALIDADE?
A sinopse oficial informa que “Medida Provisória” se situa “num futuro próximo distópico no Brasil”. Mas a sensação transmitida, à la “Black Mirror”, é a de que somos vizinhos desse mundo paralelo onde todas as escolhas erradas foram feitas e o autoritarismo impera.
Na falta de união e solidariedade, os brancos observam toda aquela opressão em silêncio, sem qualquer protagonismo da parte deles, relegando somente aos negros a mudança dos rumos da história. É com esse questionamento, a propósito, que o filme se inicia: sobre o saber estar-se vivendo um acontecimento histórico, quando nem sempre o sabemos.
“Medida provisória” celebra um humor de causar desconforto, por assim dizer, especialmente quando o espectador se vê no lugar de decidir entre rir ou não das tiradas hilárias que vê na tela.
A julgar pelos vídeos da apresentação de “Namíbia, não” disponíveis no YouTube, a resposta do público se mantém unânime nas duas versões.
A peça teatral, de fato, foi promovida como comédia-dramática, enquanto o filme se classifica como drama e ficção científica.
Mais do que fazer rir, porém, o filme nos convida a pensar e avaliar os passos que temos dado como nação e a olhar, com preocupação, para o futuro, se quisermos evitar o absurdo ali retratado.
MEDIDA PROVISÓRIA – ATUAÇÕES BRILHANTES
Em “Medida Provisória”, Adriana Esteves e Renata Sorrah brindam o filme com seu profissionalismo já mais do que reconhecido.
Ambas interpretam papéis complementares entre si, ainda que não se encontrem em cena; são personificações caricatas da execução da lei e da opinião taxativa que soterra o respeito ao outro, o diálogo e a tolerância.
Seu Jorge, na pele de André, transborda a jovialidade e astúcia de um personagem fácil de agradar ao público. O mesmo se pode dizer da Capitú de Taís Araújo, ainda que a passagem da ingenuidade à astúcia seja justamente o processo de crescimento da personagem.
Já Alfred Enoch, ator anglo-brasileiro, é conhecido mundialmente pelos papéis de Dino Thomas na série “Harry Potter” e de Wes Gibbins na série “How to get Away with a murder”.
Sua participação em “Medida Provisória”, a convite de Lázaro Ramos, marca sua estreia em uma produção brasileira, a realização de um sonho. Sua atuação tem o frescor de uma muito bem-vinda novidade para o cinema nacional, agregando ao filme charme, carisma e intensidade.
MEDIDA PROVISÓRIA – TRILHA SONORA CIRÚRGICA
A excelente trilha sonora conta, ainda, com nomes como Elza Soares, Liniker, Cartola e Baco Exu do Blues.
Expoentes da música brasileira que cantam, encantam, traduzem, transmutam, transmitem, vivenciam a realidade de nosso país. É através de suas vozes, composições, expressões que a luta se faz diária e existente.
Forte, importante, imponente, assinam suas marcas e elevam a nível estelar o longa de Lázaro Ramos.
“Medida Provisória” estreia nos cinemas brasileiros no próximo dia 14 de abril.
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